Corríamos
com nossas bicicletas pelas ruas como se não houvesse amanhã. E talvez não
tivesse mesmo. Eu estava na frente, e por motivos óbvios eu achava que ele
estava me deixando ganhar, como fazia sempre. Não me permitia olhar pra trás,
porque tinha um medo danado de perder o controle da bicicleta e acabar
atropelando algum ser indefeso. Foi quando ouvi a voz dele mais próxima do que
imaginava que estaria.
-
Vamos parar no parque – Ele disse, e eu apenas lhe mandei um sinal de ok. O
parque ao qual ele se referia, era um conjunto de árvores espaçadas onde a
prefeitura havia colocado bancos e delimitado espaços para caminhada. Não era
grande coisa, existiam vários deles por Jersey City. Continuei na velocidade
que estava e ao chegar ao parque dei uma freada brusca, com medo até mesmo que
ele batesse direto na minha traseira, mas não o fez. Quando bati minhas rodas
no meio-fio, ofegante, Josh parou logo ao meu lado, como um piloto profissional,
sorrindo com seu cabelo recém-cortado, espetado para o céu com um gel que já
estava por perder seu efeito, revelando seus fios lisos e pesados. Ele sempre
havia sido um menino muito bonito, mas eu não me deixava admitir isso. Aos 11
anos já é considerado muito esquisito que sua única amizade de verdade seja um
menino, imagina se eu começasse a lhe admirar os olhos, a boca, o corpo... E
por fim me apaixonando. Por um garoto. Com 10 anos? Era drama demais pra uma
criança só, tinha coisas melhores a fazer... Como assistir à desenhos na
televisão. Eles sempre terminavam bem.
-
Daqui a pouco você tem que ir embora – Eu falei, sentindo todo o pesar da minha
voz rondando o ar. Ele olhou pras rodas, meio confuso, mas logo levantou a
cabeça sorrindo, para exclamar:
-
Não se preocupe com isso, vamos sentar num banco, sim? – Eu apenas concordei
com a cabeça e levamos nossas bicicletas para dentro do parque. Eu não tinha
muito que falar, ainda estava assimilando a ideia de que não ia mais ter o meu
melhor amigo comigo, que ele iria embora pra sempre. Quando chegamos a um local
longe das senhoras que caminhavam pelo lugar com seus cachorros naquela manhã
de domingo, sentamos no banco mais próximo e ficamos por alguns segundos apenas
ouvindo os passarinhos que cantavam alegres, alheios a tudo, enquanto nossas
bicicletas recostavam nos arbustos próximos. Ele quebrou o silêncio.
-
Sabe, se pensarmos por outro lado, Los Angeles não é tão longe. – Ele tinha o
rosto virado pra mim, sorrindo grande. Eu sorri junto, mais por ele do que por
felicidade. Ele lá era idiota? Podíamos ser novos, mas já havíamos passado da
geografia básica. Los Angeles ficava do outro lado do país. Não tinha nem ideia
de quantos anos eram de viagem até lá. – Poderia ser no Japão. – Ele completou,
e por um momento, uma gargalhada saiu de mim. Cessando aos poucos o riso, eu
resolvi responder.
-
É, talvez não seja tão mal assim. – Eu tentei parecer convencida, mas não deu
certo. Dessa vez foi ele que não se convenceu de nada.
-
E você pode me visitar todo verão, e nas férias de fim de ano também... – Ele
colocou os pés pra cima dos bancos, abraçando os joelhos – Sabia que lá até em
dezembro dizem que é quente? – Eu pisquei, interessada na história. – Porque é
perto do México – Eu concordei com a cabeça. Ele parou de falar, agora mordia a
pulseira que sempre carregava no braço. Ele ainda me olhava, com aquela cara de
cachorro sem dono. Um pássaro passou provavelmente muito perto de nós, eu o
ouvi cantar, mas não consegui desviar o olhar do de Josh.
-
Eu tenho medo – Falei, por fim.
-
Medo de quê? – Ele perguntou, apoiando o queixo nos joelhos, com ar de
curiosidade.
-
Medo de não ser a mesma coisa - Me virei por fim, sentando da mesma forma que
ele, só que de frente para a rua. Enfezada, abracei os joelhos e fiquei com a
cara amarrada, esperando alguma reação. Ela veio, mas foi bem lenta. Ele se
virou devagar, podia sentir cada movimento. Descruzou meus braços das pernas e
me fez olhar pra ele.
-
Vamos prometer uma coisa? – Eu não respondi, apenas continuei a encará-lo, ele
resolveu continuar. – A gente se conhece desde sempre! Não teve um dia em que
não estivéssemos juntos. A nossa história somos eu e você, sempre! Não é
verdade? – Com cautela, eu concordei, balançando a cabeça. – Pois então, eu
quero que a gente prometa, que não importa o que aconteça, sempre estaremos na
vida um do outro. Somos os melhores amigos do mundo e isso não pode acabar só por
causa da distância, não é? – Eu já sorria, mas ainda tímida. Ele me acompanhou
com o sorriso mais lindo de todos, e logo em seguida levantou-se, empolgado.
-
Então vamos fazer um pacto! – Exclamou, com as mãos na cintura.
-
Um pacto? – Eu levantei ao perguntar, querendo entender onde ele iria chegar.
-
Sim, um pacto! – Ele segurou a minha mão, e me olhou nos olhos. – Eu, Joshua
Hutcherson, prometo que nunca, não importa o que aconteça, abandonarei Annabeth
Carlson. Prometo que mesmo de longe eu cuidarei dela. Estarei sempre olhando
por ela e nunca esquecerei o quanto ela é especial pra mim. Annabeth, eu te
amo.
Pra
ele foi simples como respirar, eu não sabia o que dizer e nem o que esperar.
Nunca fomos dessas intimidades, porque sempre achamos que não era necessário,
não era fase pra isso, estávamos indo longe demais. Mas devido às
circunstâncias, não me importaria com a opinião da classe se soubesse. Ele era
meu melhor e único amigo. Ele ia embora e depois eu estaria sozinha. Eu
precisava prometer e nada do que eu dissesse explicaria o quanto ele me faria
falta.
-
Eu, Annabeth Carlson, prometo nunca abandonar Joshua Hutcherson. Estarei sempre
com ele e fazendo com que ele seja feliz, mesmo de longe. E nada me fará
esquecer o quando ele é especial pra mim. Josh, eu te amo.
Sorrimos.
E foi assim, tão rápido. Quando vi, ele tinha tomado a distância que havia
entre nós, levantado um pouco os pés e me roubado um selinho. Um beijo. Eu
nunca tinha sido beijada. Com mais idade eu lamentaria o tempo inteiro por
aquele beijo ter sido tão tarde, por ter sido somente quando ele estava para ir
embora. Mas eu só tinha 10 anos. Aquele beijo nunca mais foi mencionado.
Seguimos pra casa em nossas bicicletas e eu o vi entrar no táxi para o
aeroporto. Parada, no jardim da minha casa, observei ele acenar da janela até o
carro fazer a curva, tão longe que o via como uma formiguinha. E foi aí que
chorei. Chorei até não ter mais lágrimas em mim. Chorei até não sentir a mim.
Chorei até não aguentar mais. Chorei até adormecer.
Barulho infernal
era aquele. Parecia que não ia acabar jamais. Mas de certa forma era
reconfortante. Reconfortante porque eu não precisaria mais passar por todo o
período sem Josh que procedia aquela lembrança. Reviver aqueles momentos me
dava arrepios e me sentei na cama já enjoada. Coloquei a mão no rosto, eu suava
frio. Pode ter sido o tanto que bebi e fumei ontem, sozinha. Não fez bem ao meu
estômago. Lembrei então de que dia era, gemi baixo. Peguei meu celular no
criado mudo, que era o responsável por todo o barulho e notei que ele havia
despertado... Pela oitava vez! Eu estava mais do que atrasada pro primeiro dia
de aula. Pulei da cama, respirando fundo. Eu conseguia me arrumar rápido e não
chegaria tão atrasada assim, vai que dava até um charme. Aquele tipo de menina
que não se importa com horários. Levantei-me e fui fazendo o necessário no
tempo mais rápido que podia. Sem nem tomar café, saí de casa pela porta dos
fundos, como uma bala. Dei tchau para minha mãe, enquanto corria pra pegar a
bicicleta velha e comecei a pedalar, portão afora. Respirava fundo, o vento um
pouco gelado da manhã no meu rosto fazia meu nariz coçar. Bati meu recorde ao
chegar na escola antes do sinal tocar. Parei com a bicicleta no local
destinado, a tranquei e segui andando até a entrada. Todas as vezes que
acordava tão tarde pensava em porque minha mãe não me dava logo o carro, minha
vida seria muito mais fácil, mas pela forma como me comportava ultimamente,
acho que dava razão a ela por não colocar tal máquina em minhas mãos.
Passando pelo
portão principal, indo em direção ao corredor de armários eu via a cena comum
de volta ao ano letivo. Pessoas se abraçando, contando como foram as férias e
todas as novidades trazidas da França, Bélgica, ou simplesmente de Pittsburgh.
Tudo sempre era motivo pra muita felicidade e eu não via graça naquilo.
Chegando ao meu armário, o único que não tinha enfeites por dentro, deixei
minhas coisas por lá e segui para o fim do corredor, onde eu já via Lola, com
seu inseparável isqueiro, o qual tinha mania de ascender e apagar
compulsivamente. Lola era uma loira, baixinha, magra como uma vareta e com a
pela bem branca. Usava sempre lápis de olho escuro e uma sombra tão preta
quanto, e os cabelos sempre tinham o ar de despenteados. Preto era sua cor
favorita, assim como passara a ser a minha. Éramos amigas desde o primeiro ano,
quando ela veio expulsa de um internato na Suíça. Os pais eram bem ricos, mas
cansaram de pagar tanto por uma menina que não queria nada. Ela vinha com o
sorriso costumeiro no rosto e eu fui encontrá-la. Ela não me abraçou como uma
amiga normal faria, apenas piscou antes de dizer.
- Idiotas comemorando
mais um ano nessa prisão – Eu sorri e ia responder, quando fui interrompida por
Stinky. Ele era o tipo de garoto para se apaixonar, o estilo cafajeste. Poderia
ter qualquer menina que quisesse se por acaso se vestisse direito e tirasse o
delineador dos olhos. A maioria das garotas não gostava, mas eu sempre achei
que o enchia de charme e deixava aqueles globos verdes como se brilhassem. O
cabelo escuro em contraste com a pele bronzeada... Parecia que ele havia vindo
de algum lugar costa oeste. Era um tipo latino, uma combinação que nem em mil
sonhos eu conseguiria explicar. Tirando todo esse encanto, tinha chegado no
primeiro ano também, de um reformatório. Ninguém sabia a história dele, mas pra
gente ele contava um pouco, vez em quando. O único fato que realmente me marcou
foi numa tarde ensolarada, enquanto fumávamos no Central Park, numa visita a
New York, no segundo ano, em que ele me disse seu nome verdadeiro. Alex. Achei
verdadeiro, coisa que nunca conseguimos dele.
- Falou de prisão?
Eu entendo. – Ele tirava o isqueiro das mãos de Lola, que o encarava enfezado.
Estava bem atrás de mim quando senti seu nariz em meu pescoço e o seu sussurro
quente na minha nuca – Sentiu saudades, minha linda?
Que ele arrastasse
asas pra mim era um fato que eu tentava – porém não conseguia – controlar. Eu
me sentia lisonjeada e ao mesmo tempo com muito medo. Já tínhamos tido alguns
rolos, mas eu tinha medo do que ele podia fazer e de onde aquilo podia acabar.
- Como se eu
sentisse falta de algo, queridinho? – Eu falei, me virando e apertando suas
bochechas. Ele sorriu, dando um passo pra trás. Foi quando percebi um pequeno
alvoroço, vindo da entrada. Resolvi encarar, para descobrir o que era. Meninas
corriam para ver, garotos riam indo em direção ao pátio. Eu só queria saber o
porque de tanta euforia, mas haviam muitas pessoas na minha frente pra que eu
conseguisse enxergar algo concretamente. Resolvi dar dois passos pra frente,
tentando ultrapassar dois marmanjos que resolveram parar justamente na nossa
frente e foi aí que eu vi.
Ele seguia andando
e aqueles olhos castanho-esverdeados tinham um ar bastante feliz. Parecia que o
mundo havia ficado em câmera lenta. Desci para os lábios e um sorriso bobo
surgia, moviam-se vez em quando, cumprimentando os conhecidos. Apenas uma alça
da mochila no ombro, o andar único. Foi quando seu olhar se encontrou com o meu
e eu prendi a respiração por um instante. O sorriso dele desapareceu e eu não
conseguia me mover. Ele tinha dito alguma coisa, eu vi seus lábios se moverem,
mas não consegui ouvir nada. Percebi que seus olhos não saíam dos meus e ele
parecia lentamente se aproximar. Sem me conter, girei o corpo na direção oposta
e corri para o mais longe possível do corredor principal. Não podia estar
acontecendo. Não podia ser verdade.
Biologia. Meu
primeiro tempo tinha mesmo que ser de biologia, e com o estúpido do Hickles? Eu
já estava sentada, no final da sala, mexendo no brinco e ainda pensando no
acontecido há poucos minutos. Josh Hutcherson, aquele que há sete anos me
abandonou como se eu não fosse nada, esqueceu-se de mim como se eu fosse um
lixo e simplesmente não deu explicações estaria de volta a cidade. Estaria de
volta a minha vida. Era coisa demais pra assimilar, mas uma coisa eu já tinha
decidido: Isso só aconteceria se eu deixasse. Ele parecia continuar o mesmo.
Prestativo, comunicativo... Feliz. E eu? O que era? Meus pensamentos foram
interrompidos pela porta sendo aberta.
- Me desculpe, eu
sou o aluno novo e tive que pegar meu horário. – Ele sorria, ai como sorria. Era
o mesmo sorriso de sete anos atrás. Eu tinha a boca entreaberta, meu peito
subia e descia de tão forte que eu respirava. Não conseguia entender.
- Muito bem, senhor
Hutcherson. Infelizmente não temos lugares aqui na frente, mas acho que há um
sobrando ao lado da senhorita Carlson. Sim? – E todos os olhares da turma se
voltaram para mim. Eu. A mutante do final da sala estaria sentada perto do
menino novo. Acho que pensaram que eu acabaria devorando-o. Bem, apenas os
alunos novos. Muitos já estudavam conosco havia muito e provavelmente sabiam da
nossa história. Eu nem ousava olhar para suas caras. Dei de ombros para o
professor e Josh veio andando, pra cadeira vazia ao meu lado na bancada. Não
lhe dei nem oi, continuei a jogar a cadeira pra trás, equilibrando-a em duas
pernas.
- Ann... – Ele
sussurrou. Respirei fundo antes de me virar e ele me encarava com cautela.
Aqueles olhos estavam me desarmando. – Eu nem acredito que é você...
- Pareço diferente?
– Perguntei, sarcástica. A não ser pelos três quilos de peito na minha blusa e
pelos outros três quilos de maquiagem na minha cara, eu acho que era a mesma,
não é?
- Muito... Você
está... – Eu o interrompi.
- Estranha? – Ri
pelo nariz, e virei meu olhar pro quadro, onde o professor explicava alguma
coisa que, pela primeira vez, eu nem queria entender.
- Eu ia dizer
linda... – A voz dele tomou um tom mais baixo, e eu me assustei. Virei-me pra
ele e ele encarava as próprias mãos. Ficamos em silêncio. O professor passou
algum trabalho em dupla e os burburinhos começaram na sala, porém eu ainda o
encarava. Nada a dizer, mas havia algo, preso em mim. Eu precisava falar, para
não me sufocar. Mas era difícil, eu não queria... Mas eu precisava.
- Por que você fez
isso comigo? – Eu perguntei. Quando menos esperei, saiu.
- Isso o quê? – Ele
me encarou, sem entender. Como ele podia ser tão cínico?
- Me diga, Josh.
Como é Los Angeles? Muitas meninas bonitas na Costa Oeste? Eu acho que seriam
coisas que eu deveria saber, e porque eu não soube, Joshua? – Eu quase gritava.
Respirando fundo, meu corpo tremia. Eu não sabia de onde vinha aquela raiva em
mim. Agora toda a sala nos encarava.
- Ann, eu posso
explicar... – Ele se virava pra mim, com os olhos cheios de pesar, mas eu não
podia acreditar. Ele havia me abandonado. Nós tínhamos um pacto. Foram sete
anos sozinha.
- Não me chama de
Ann! Pra você é Annabeth. – Respirei fundo e mordi meu lábio, tomando um ar. –
Mas me diz: roupinhas de marca, sorriso no rosto, tá até vermelho de praia, me
diga, Josh... Devia ser popular na sua outra escola, não é?
- É, mas isso não
importa... – Ele tentava falar, mas eu não deixei.
- Devia ter muitos
amigos por lá, não? – Eu estava ofegante e sentia em minha testa brotarem gotas
de suor, minhas mãos não conseguiam parar na mesa. Ele não me respondeu. Estava
muito irritada pra parar por ali. – Pois vá dizer a eles que eles estão lindos,
vá perguntar a eles como eles estão e, por favor, vá tentar repor a eles sete
anos de ausência.
Não tinha mais o
que dizer. A sala inteira, inclusive o professor Hickles estava nos encarando,
atordoado. Peguei minhas coisas e com os olhos cheios d’água, tentando não
deixar ninguém reparar, me dirigi até a saída.
- Me desculpe, Sr
Hickles, eu não me sinto bem. – E sem mais o que acrescentar, bati a porta.
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