-
O que tem seu psicólogo, querida? – Ela ainda não me olhava, falava de costas
para mim, do mesmo jeito que havia parado. Eu dei alguns passos em direção a
ela.
-
Ah, como foi que tudo acabou? – Eu mexia nas unhas, fingindo indiferença. Sabia
que a qualquer momento ela poderia virar e eu teria que descobrir a verdade
naquele momento. – Só me lembro de parar de ir... Tão de repente.
Ela
se virou devagar e tinha um sorriso que me dava medo no rosto, por ser tão inexplicavelmente
calmo, diferente do seu corpo que parecia completamente enrijecido, fazendo o
mínimo de movimentos possíveis.
-
Ele fez um exame final em você. – Ela ainda sorria – E disse que você já tinha
ficado melhor da depressão. Depois de ver que você já não desenhava mais coisas
estranhas e nem chorava durante a noite. Ou acordava com pesadelos. – Ela veio
andando em minha direção e pensei que ela fosse tocar meu rosto, mas não o fez.
Eu continuava parada, apenas a encarando.
-
Foi isso mesmo? Eu que disse, não, mãe? Fui eu que contei a ele como me
sentia... – Eu a olhava nos olhos, séria. Aos poucos o sorriso dela foi
desaparecendo, e seu olhar fixado em mim pareceu... aterrorizado. – Lembro que
foi porque alguém simplesmente resolveu não fazer mais parte da minha vida.
-
Sim, querida. – Ela disse antes de abaixar os olhos e encarar os próprios
sapatos, virando-se rapidamente e andando até a cozinha. Eu bufei e corri atrás
dela.
-
Estranho eu ter sido diagnosticada como... – eu fiz aspas com os meus dedos – ...“normal”
e pouco tempo depois ter me tornado o que você tá vendo agora, não é mamãe? –
Eu usava um tom hostil, não fui que escolhi, apenas saiu. Ela me encarava
agora, e seu olhar transbordava o terror que, anteriormente, só tinha visto uma
amostra. Eu continuava a encará-la.
-
Eu também queria entender isso, Annabeth. – Ela parou de me olhar e começou a
mexer nas coisas desesperadamente, como se buscasse algo a fazer. – Você que
deve me dizer porque está tão complicada nesses últimos anos...
-
Sabe, mamãe! – Eu a interrompi, indo até a bancada da pia (onde ela estava
naquele momento, mexendo nos talheres) e parei na sua frente, bem perto de seu
rosto para que ela não pudesse desviar o olhar – Eu tenho falado com Josh sim.
Os
ombros dela relaxaram e eu senti um sopro de ar sair de sua boca, mas ela não
falou nada, por isso eu continuei.
-
Ele me disse que me mandava cartas sempre... E que me mandou presentes também.
-
Ahn? O quê? Presentes? Ca-cartas? – Ela começava a gaguejar, eu sentia que
estava pegando na ferida. Era agora ou nunca.
-
Então, mãe? Tem alguma coisa a dizer sobre isso? – Eu aumentei o tom de voz e
dei alguns passos pra trás, cruzando os braços em seguida, tentando fazer pose
de durona.
-
Eu não sei do que ele está falando... – E ela voltou a andar procurando o que
fazer como uma louca. Eu não podia aguentar.
-
Como não?! – Eu explodi, num grito. Ela se virou pra mim, num susto – Me
explica, mãe? Ele me mandou presentes? Ele me mandou cartas?
-
Eu não sei de nada... – Ela tentava falar, mas eu continuei.
-
Eu não recebi nada! Por que será? Sabe – Eu falei, fingindo me conformar da
forma mais sarcástica possível – Eu vou até o correio, remexer em arquivos de 6
anos atrás pra saber se eles por acaso não quiseram me entregar centenas de
cartas e souvenires! – Eu bati as mãos nas coxas, já com o tom de voz
absurdamente alto. Eu estava ficando cada vez pior, a raiva que eu tinha
guardado voltava a subir.
-
Minha filha, eu... – Ela agora parecia suplicar por uma oportunidade de falar,
mas eu não deixei.
-
Então eu processo! Processo os correios, porque prender correspondência não é
legal. Eu tenho meus direitos – Eu apontava pro meu próprio peito, indignada –
E aí, mamãe, você vai poder responder isso de qualquer forma. – Pausei. – Num
tribunal! – Eu gritei, e parei de frente pra ela, ofegante. Ela mordeu o lábio,
abaixou a cabeça e eu vi lágrimas em seus olhos.
-
Eu só fiz o que achei que fosse certo. – Ela disse, baixo, e eu respirei fundo,
fechando os olhos. Ela continuou – O seu psicólogo disse que seria melhor, que
você melhoraria se ele não estivesse na sua vida. – Eu vi uma lágrima escorrer
pela bochecha dela e pela primeira vez meus olhos começaram a transbordar. – E
eu fiz porque eu não aguentava mais te ver mal! – Ela falou, subindo finalmente
a voz e me mostrando seu rosto, já com mais lágrimas derramadas. – E quando eu
te vi tão bem, eu achei que tivesse funcionado... Eu fiz pro seu bem.
-
Mas não funcionou, mãe! – Eu gritei. – Como você não notou que eu ainda estava
estranha? Que eu me escondia e não conversava com você. Sabe por que eu não
tinha pesadelos? Porque eu quase não dormia! – As lágrimas rolavam pelo meu
rosto e pareciam em sincronia com as dela. Estávamos as duas, na cozinha,
brigando pela primeira vez como adultas. – Eu fingi pra acabar com toda aquela
formalidade que estava me consumindo!
-
Como assim? – Ela se aproximou com um passo e eu dei outro passo pra trás, não
era hora pra ela querer me consolar. Eu ainda tinha muito a dizer.
-
Eu não aguentava aquela pessoa que eu nunca vi e nem se importava comigo me
perguntando sobre a minha vida! – Eu falei. E era verdade. Meu psicólogo se
chamava Howard e tinha seus 50 anos, ele não parecia ser o mais indicado para
crianças. Falava comigo como quem falava com um adulto, e aos 13 anos o que eu
sabia era que os adultos não se importavam com o que as crianças queriam. Ele
era só um senhor, pago pela minha mãe, pra me fazer esquecer momentos ruins e a
única vantagem dele em executar tal serviço, era que ele recebia para isso. Só
o dinheiro o movia, e danem-se meus sentimentos. Eu não me sentia confortável
com aquilo, por isso havia mentido. Por isso eu fingi que estava bem e
continuei fingindo por tanto tempo. – E você não percebeu. Não percebeu que eu
precisava era de gente que me amasse e que cuidasse de mim! – Eu gritei.
Ela
não se moveu mais e me olhava com pesar. Eu pensei que ela fosse dizer algo,
mas não disse.
-
Preferiu jogar a responsabilidade nas mãos de quem nem me conhecia. Você nem
checou mesmo... Qualquer mãe decente – eu falei, sem pensar e seu rosto se
contraiu, mostrando mais lágrimas, mas eu não parei – teria percebido que eu
não dormia e que eu não tinha amigos, que eu era estranha... Que eu precisava
de algo e a primeira coisa que uma mãe daria seria compreensão. – Respirei
antes de continuar – Quando você conversava comigo, mãe? Quando? E agora você
vem dizer que sente falta de mim? Eu mudei, mas você não. E não teria mudado
mesmo que eu fosse a mesma. Não adianta eu passar o tempo inteiro em casa com
você, se você não está comigo!
-
Minha filha, eu nem sei o que dizer, tem tanta coisa... – Ela olhava para todos
os lados, buscando palavras – Ter filhos... Criar filhos. É complicado. Eu só
queria o seu bem, e não achei que eu pudesse te dar o que era melhor pra você,
por isso...
-
Por isso mentiu? – Perguntei, a interrompendo. – É mentindo que você quer meu
bem? Escondeu todas as cartas do Josh, me fez ficar com raiva dele por todos
esses anos. Fez-me ter raiva de mim mesma por todos esses anos!
-
O doutor disse...
-
Que se foda o doutor! – Eu xinguei, alto. Em outro momento me arrependeria, era
a minha mãe, mas eu não aguentei. Ela deu um passo para trás com o peso das
minhas palavras. Olhava-me como se não me conhecesse mais. – Eu queria a minha
mãe! E eu queria o meu melhor amigo! E eu não tive... Os dois! – Eu me virei,
colocando as mãos na cabeça, mexendo nos cabelos, eu estava frustrada. Mas algo
me veio a cabeça – E por que... – Eu comecei, falando devagar – Ficou tão feliz
em dizer que ele voltaria pra cá há uma semana?
Ela
sorriu de canto, meio tímida, e me respondeu:
-
Você estava tão diferente. Eu percebi o que tinha feito, mas tarde demais... –
Ela respirou – E talvez essa fosse a hora de você ficar bem de novo... De ser a
minha menina.
Ficamos
em silêncio, apenas nossas respirações se mostrando. Mordi meu lábio enquanto
acalmava os nervos. Minhas mãos tremiam.
-
Onde estão? – Eu perguntei, fazendo minha mãe me encarar.
-
Onde estão o quê? – Ela falou baixo.
-
As coisas que você escondeu todos esses anos... – Eu expliquei, fria. Ela
abaixou o olhar.
-
No porão – Ela disse, num sussurro, sem me olhar nos olhos.
Também
não esperei que ela fizesse algo. Girei os calcanhares e fui direto para a
porta onde estava a escada que dava acesso ao outro andar de baixo. Naquele
cômodo escuro e empoeirado, embaixo de toda a casa, a luz era fraca e havia
muitas caixas. Como eu acharia no meio de tanta coisa? De qualquer jeito eu
saberia que estavam bem enterradas, pois Josh já não me mandava coisas há
alguns anos. Fui então, na pilha de coisas, tirando uma por uma. Caixas com
coisas de quando eu era um bebê, na frente, junto a coisas do trabalho da minha
mãe e do trabalho do meu pai. Coisas que encobririam, as que eu não teria
coragem de pegar pra mexer e ter o risco de encontrar a que eu procurava.
E
depois de muito mexer, no fundo de tudo, eu achei uma caixa de papelão muito
empoeirada. Eu a puxei com dificuldade a trouxe para o meio do porão. Na
lateral, estava escrito: “H. Queimar quando possível”. Queimar? Ela queimaria?
Por um momento eu até pensei que minha mãe planejava o crime perfeito, mas
estava com pressa para saber o que tinha ali. Então rasguei a parte de cima
como se não houvesse amanhã.
“Como seu sinto a sua falta”
“Los Angeles continua linda”
“O Havaí não tem comparação”
“Lembrei de você depois de ter ficado horas no sol e
parecer um pimentão.”
“Queria você aqui pra rir de mim.”
"Onde você tá? Gostou do presente?”
“Eu daria tudo por respostas suas”
“Ainda chateada comigo por eu não ter ido, no verão?”
“Eu não sei que tá havendo, mas eu só queria saber como
você tá”
“Por favor, onde estão suas cartas? Tenho tanto a te
contar”
“Eu entrei pro time de basquete, e você pra comemorar
comigo?”
“Você pode não se importar mais, mas eu ainda preciso
de você”
“Eu te amo. Muito.”
Eu
não conseguia nem respirar. Eram muitas lágrimas, lendo linha por linha daquele
bolo de cartas que estavam ali. E o pior não eram os papeis, eram as coisas que
vinham junto delas e que minha mãe não me entregara. Ele havia me mandado
diversas coisas anexas, pra que eu me sentisse parte daquilo. Um papel de
chiclete na carta do dia em que ele quase morreu engolindo um chiclete por
causa de um susto. Uma folha, a primeira a cair, na carta do início do outono. Uma
foto do primeiro jogo dele no time, que por acaso ele ganhou. Mas lá no fundo,
bem lá no fundo estavam os presentes que ele tinha me comprado no Havaí. Era um
saquinho, e parecia pesado. Sorri entre lágrimas, ao perceber que ele tinha gastado
dinheiro com tanta coisa pra mim. Abri rapidamente e comecei a tirar as coisas
dali: um chaveiro que era uma prancha, feio a mão, escrito “Melhor amiga, para sempre”; um kit que
grandinho, que quando eu abri, vi que era uma fantasia de hula e dentro tinha um bilhete “Espero
ter acertado no tamanho. Mamãe que comprou”; um cd feito por lá do disco de
Elvis Presley “Blue Hawaii”. Dentro, ele havia escrito “Pra você que ama Lilo & Stitch” – o que me fez chorar mais
compulsivamente; e por último, havia uma boneca de pano vestida de havaiana que
era a minha cara. Imaginei que ele estivesse esperando que eu vestisse a
fantasia e fosse a alguma festa, agarrada na boneca. Ou que simplesmente lhe
enviasse uma foto. Solucei um pouco, encostando numa das vigas do porão e
dobrando os joelhos junto ao corpo, enquanto apertava a boneca seguindo meu
choro. Eu não conseguia me controlar, cada parte de mim só pensava no tempo
perdido e em como Josh tinha se preocupado comigo, lembrado de mim... Me amado
como o melhor amigo que ninguém ia conseguir ter, só eu. E me impediram de ter.
Eu me balançava como uma criança, pra frente e pra trás, tentando controlar o
ataque de pânico que me consumia. Meus olhos e cabeça doíam pelo choro, mas as
lágrimas não paravam de sair. A boneca em meus braços parecia ficar menor,
quanto mais eu a apertava. Mas eu precisava respirar bem fundo e mostrar pra
ele o quanto eu estava grata. Poderia ser tarde, mas não deixaria para o nunca.
Josh precisava saber o quanto ele era importante pra mim. Ele não havia
mentido. Ele teria mais motivos pra ficar com raiva de mim, pois – teoricamente
– eu que o abandonei, mas ele não o tinha feito. Ele voltou, com toda a
felicidade do mundo, disposto a esquecer do passado e me fazer feliz novamente.
E ainda achando que a culpa era dele. Ele só podia ser um anjo.
Sem enxergar um
palmo a frente do nariz, pelas lágrimas que saíam incontroláveis de meus olhos,
eu me levantei com a boneca em mãos e corri escada a cima, para sair de casa e
ir até os Hutcherson, gritar a ele e ao mundo que ele era meu melhor amigo. Ele
era meu. Mas quando cheguei ao penúltimo degrau, senti tudo a minha volta girar
e minhas pernas perderem a força. Errei o pé no degrau e logo vi o mesmo bem
próximo do meu nariz. Tudo ficou escuro.
“E então, doutor? Como ela está?” “Bem, foi só um
susto. Ela receberá alta pela manhã, mas deverá ficar em casa” Eu ouvia tudo, mas
meus olhos estavam pesados. Não conseguia abri-los. Sentia que talvez não
conseguisse mover minhas mãos, também... Minha cabeça estava pesada. E mesmo
que conseguisse, não queria me mover. Estava reconhecendo as vozes na sala. “Muito obrigada doutor, tem certeza?” Minha
mãe. E pelo “doutor”, eu não estava em casa. “Tenho sim, Senhora Carlson. Fique tranquila. O tombo não foi tanto, e
ela desmaiou por conta da pressão baixa... Talvez algum estresse” “Certo
doutor, eu confio no senhor” É claro, ela sempre se mostrou tão suscetível
a homens graduados. “Agora deixe-a a
dormir” Eu ouvi o homem falar “E
tente descansar um pouco” “Certo, vou tomar um pouco de café.” E com alguns
passos, ouvi a porta bater. Esperei alguns instantes, pra confirmar se estava
sozinha. Fui abrindo os olhos devagar e como previ, só havia eu. A sala era
branca, a luz forte, e o cheiro de hospital começava a me enjoar. Percebi que
tinha um aparelho monitorando meus batimentos e soro entrando por minhas veias.
Movi o braço devagar, que começava a doer assim que notei que havia uma agulha
enfiada nele e quando fui seguindo o olhar pelo resto do quarto notei ao meu
lado um arranjo de flores lindo. Eram rosas, de um rosa bem clarinho. Sorri e
vi que vinham acompanhadas de uma caixa de chocolates e em cima dela um papel.
Estiquei o braço bom devagar e peguei o bilhete. Abri e meu coração queria
saltar quando vi o que estava escrito.
Te visitei, mas você estava dormindo. Não queria te
acordar e precisava fazer coisas em casa, por isso deixei estas flores e os
chocolates. Flores, pois alegram o ambiente – e eu sei que você odeia
hospitais; chocolates, pois alegram a alma – e como eu não estou aí para fazer
isso eu mesmo... Fica comigo, BanAnna.
Melhora por mim. Beijos, do Josh.
Eu
sorria como uma tola, nunca tinha sentindo meu corpo esquentar tão rapidamente,
minhas bochechas queimavam. Com aquele bilhete, me lembrei de tudo o que tinha
acontecido antes e tomei uma decisão.
Por
volta das 8 P.M eu fui liberada, e meu pai foi me buscar, levando eu e minha
mãe para casa. Não estava sentindo nada, mas ainda estava meio cansada. Ainda
assim, tinha forças para uma coisa. Não importava que o médico tivesse
proibido, eu iria a escola no outro dia. Já tinha tudo planejado e era bem
simples. Eu já via até a cara de Josh, abrindo um bilhete entregue pela
inspetora onde estaria escrito, com a minha melhor caligrafia:
Encontre-me no terraço.
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