Sinopse

Era uma amizade. Uma promessa. Eles ficariam juntos pra sempre, não importava o tempo que passasse. Ele foi embora, ela esperou. Mas os tempos mudam, as pessoas mudam. E as promessas? Ele resolveu voltar. Ela não é mais a mesma. E os dois, será que esse ainda existe?

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Verdades Demais


         - O que tem seu psicólogo, querida? – Ela ainda não me olhava, falava de costas para mim, do mesmo jeito que havia parado. Eu dei alguns passos em direção a ela.
         - Ah, como foi que tudo acabou? – Eu mexia nas unhas, fingindo indiferença. Sabia que a qualquer momento ela poderia virar e eu teria que descobrir a verdade naquele momento. – Só me lembro de parar de ir... Tão de repente.
         Ela se virou devagar e tinha um sorriso que me dava medo no rosto, por ser tão inexplicavelmente calmo, diferente do seu corpo que parecia completamente enrijecido, fazendo o mínimo de movimentos possíveis.
         - Ele fez um exame final em você. – Ela ainda sorria – E disse que você já tinha ficado melhor da depressão. Depois de ver que você já não desenhava mais coisas estranhas e nem chorava durante a noite. Ou acordava com pesadelos. – Ela veio andando em minha direção e pensei que ela fosse tocar meu rosto, mas não o fez. Eu continuava parada, apenas a encarando.
         - Foi isso mesmo? Eu que disse, não, mãe? Fui eu que contei a ele como me sentia... – Eu a olhava nos olhos, séria. Aos poucos o sorriso dela foi desaparecendo, e seu olhar fixado em mim pareceu... aterrorizado. – Lembro que foi porque alguém simplesmente resolveu não fazer mais parte da minha vida.
         - Sim, querida. – Ela disse antes de abaixar os olhos e encarar os próprios sapatos, virando-se rapidamente e andando até a cozinha. Eu bufei e corri atrás dela.
         - Estranho eu ter sido diagnosticada como... – eu fiz aspas com os meus dedos – ...“normal” e pouco tempo depois ter me tornado o que você tá vendo agora, não é mamãe? – Eu usava um tom hostil, não fui que escolhi, apenas saiu. Ela me encarava agora, e seu olhar transbordava o terror que, anteriormente, só tinha visto uma amostra. Eu continuava a encará-la.
         - Eu também queria entender isso, Annabeth. – Ela parou de me olhar e começou a mexer nas coisas desesperadamente, como se buscasse algo a fazer. – Você que deve me dizer porque está tão complicada nesses últimos anos...
         - Sabe, mamãe! – Eu a interrompi, indo até a bancada da pia (onde ela estava naquele momento, mexendo nos talheres) e parei na sua frente, bem perto de seu rosto para que ela não pudesse desviar o olhar – Eu tenho falado com Josh sim.
         Os ombros dela relaxaram e eu senti um sopro de ar sair de sua boca, mas ela não falou nada, por isso eu continuei.
         - Ele me disse que me mandava cartas sempre... E que me mandou presentes também.
         - Ahn? O quê? Presentes? Ca-cartas? – Ela começava a gaguejar, eu sentia que estava pegando na ferida. Era agora ou nunca.
         - Então, mãe? Tem alguma coisa a dizer sobre isso? – Eu aumentei o tom de voz e dei alguns passos pra trás, cruzando os braços em seguida, tentando fazer pose de durona.
         - Eu não sei do que ele está falando... – E ela voltou a andar procurando o que fazer como uma louca. Eu não podia aguentar.
         - Como não?! – Eu explodi, num grito. Ela se virou pra mim, num susto – Me explica, mãe? Ele me mandou presentes? Ele me mandou cartas?
         - Eu não sei de nada... – Ela tentava falar, mas eu continuei.
         - Eu não recebi nada! Por que será? Sabe – Eu falei, fingindo me conformar da forma mais sarcástica possível – Eu vou até o correio, remexer em arquivos de 6 anos atrás pra saber se eles por acaso não quiseram me entregar centenas de cartas e souvenires! – Eu bati as mãos nas coxas, já com o tom de voz absurdamente alto. Eu estava ficando cada vez pior, a raiva que eu tinha guardado voltava a subir.
         - Minha filha, eu... – Ela agora parecia suplicar por uma oportunidade de falar, mas eu não deixei.
         - Então eu processo! Processo os correios, porque prender correspondência não é legal. Eu tenho meus direitos – Eu apontava pro meu próprio peito, indignada – E aí, mamãe, você vai poder responder isso de qualquer forma. – Pausei. – Num tribunal! – Eu gritei, e parei de frente pra ela, ofegante. Ela mordeu o lábio, abaixou a cabeça e eu vi lágrimas em seus olhos.
         - Eu só fiz o que achei que fosse certo. – Ela disse, baixo, e eu respirei fundo, fechando os olhos. Ela continuou – O seu psicólogo disse que seria melhor, que você melhoraria se ele não estivesse na sua vida. – Eu vi uma lágrima escorrer pela bochecha dela e pela primeira vez meus olhos começaram a transbordar. – E eu fiz porque eu não aguentava mais te ver mal! – Ela falou, subindo finalmente a voz e me mostrando seu rosto, já com mais lágrimas derramadas. – E quando eu te vi tão bem, eu achei que tivesse funcionado... Eu fiz pro seu bem.
         - Mas não funcionou, mãe! – Eu gritei. – Como você não notou que eu ainda estava estranha? Que eu me escondia e não conversava com você. Sabe por que eu não tinha pesadelos? Porque eu quase não dormia! – As lágrimas rolavam pelo meu rosto e pareciam em sincronia com as dela. Estávamos as duas, na cozinha, brigando pela primeira vez como adultas. – Eu fingi pra acabar com toda aquela formalidade que estava me consumindo!
         - Como assim? – Ela se aproximou com um passo e eu dei outro passo pra trás, não era hora pra ela querer me consolar. Eu ainda tinha muito a dizer.
         - Eu não aguentava aquela pessoa que eu nunca vi e nem se importava comigo me perguntando sobre a minha vida! – Eu falei. E era verdade. Meu psicólogo se chamava Howard e tinha seus 50 anos, ele não parecia ser o mais indicado para crianças. Falava comigo como quem falava com um adulto, e aos 13 anos o que eu sabia era que os adultos não se importavam com o que as crianças queriam. Ele era só um senhor, pago pela minha mãe, pra me fazer esquecer momentos ruins e a única vantagem dele em executar tal serviço, era que ele recebia para isso. Só o dinheiro o movia, e danem-se meus sentimentos. Eu não me sentia confortável com aquilo, por isso havia mentido. Por isso eu fingi que estava bem e continuei fingindo por tanto tempo. – E você não percebeu. Não percebeu que eu precisava era de gente que me amasse e que cuidasse de mim! – Eu gritei.
         Ela não se moveu mais e me olhava com pesar. Eu pensei que ela fosse dizer algo, mas não disse.
         - Preferiu jogar a responsabilidade nas mãos de quem nem me conhecia. Você nem checou mesmo... Qualquer mãe decente – eu falei, sem pensar e seu rosto se contraiu, mostrando mais lágrimas, mas eu não parei – teria percebido que eu não dormia e que eu não tinha amigos, que eu era estranha... Que eu precisava de algo e a primeira coisa que uma mãe daria seria compreensão. – Respirei antes de continuar – Quando você conversava comigo, mãe? Quando? E agora você vem dizer que sente falta de mim? Eu mudei, mas você não. E não teria mudado mesmo que eu fosse a mesma. Não adianta eu passar o tempo inteiro em casa com você, se você não está comigo!
         - Minha filha, eu nem sei o que dizer, tem tanta coisa... – Ela olhava para todos os lados, buscando palavras – Ter filhos... Criar filhos. É complicado. Eu só queria o seu bem, e não achei que eu pudesse te dar o que era melhor pra você, por isso...
         - Por isso mentiu? – Perguntei, a interrompendo. – É mentindo que você quer meu bem? Escondeu todas as cartas do Josh, me fez ficar com raiva dele por todos esses anos. Fez-me ter raiva de mim mesma por todos esses anos!
         - O doutor disse...
         - Que se foda o doutor! – Eu xinguei, alto. Em outro momento me arrependeria, era a minha mãe, mas eu não aguentei. Ela deu um passo para trás com o peso das minhas palavras. Olhava-me como se não me conhecesse mais. – Eu queria a minha mãe! E eu queria o meu melhor amigo! E eu não tive... Os dois! – Eu me virei, colocando as mãos na cabeça, mexendo nos cabelos, eu estava frustrada. Mas algo me veio a cabeça – E por que... – Eu comecei, falando devagar – Ficou tão feliz em dizer que ele voltaria pra cá há uma semana?
         Ela sorriu de canto, meio tímida, e me respondeu:
         - Você estava tão diferente. Eu percebi o que tinha feito, mas tarde demais... – Ela respirou – E talvez essa fosse a hora de você ficar bem de novo... De ser a minha menina.
         Ficamos em silêncio, apenas nossas respirações se mostrando. Mordi meu lábio enquanto acalmava os nervos. Minhas mãos tremiam.
         - Onde estão? – Eu perguntei, fazendo minha mãe me encarar.
         - Onde estão o quê? – Ela falou baixo.
         - As coisas que você escondeu todos esses anos... – Eu expliquei, fria. Ela abaixou o olhar.
         - No porão – Ela disse, num sussurro, sem me olhar nos olhos.
         Também não esperei que ela fizesse algo. Girei os calcanhares e fui direto para a porta onde estava a escada que dava acesso ao outro andar de baixo. Naquele cômodo escuro e empoeirado, embaixo de toda a casa, a luz era fraca e havia muitas caixas. Como eu acharia no meio de tanta coisa? De qualquer jeito eu saberia que estavam bem enterradas, pois Josh já não me mandava coisas há alguns anos. Fui então, na pilha de coisas, tirando uma por uma. Caixas com coisas de quando eu era um bebê, na frente, junto a coisas do trabalho da minha mãe e do trabalho do meu pai. Coisas que encobririam, as que eu não teria coragem de pegar pra mexer e ter o risco de encontrar a que eu procurava.
         E depois de muito mexer, no fundo de tudo, eu achei uma caixa de papelão muito empoeirada. Eu a puxei com dificuldade a trouxe para o meio do porão. Na lateral, estava escrito: “H. Queimar quando possível”. Queimar? Ela queimaria? Por um momento eu até pensei que minha mãe planejava o crime perfeito, mas estava com pressa para saber o que tinha ali. Então rasguei a parte de cima como se não houvesse amanhã.
        
“Como seu sinto a sua falta
“Los Angeles continua linda”
“O Havaí não tem comparação”
“Lembrei de você depois de ter ficado horas no sol e parecer um pimentão.”
“Queria você aqui pra rir de mim.”
"Onde você tá? Gostou do presente?”
“Eu daria tudo por respostas suas”
“Ainda chateada comigo por eu não ter ido, no verão?”
“Eu não sei que tá havendo, mas eu só queria saber como você tá”
“Por favor, onde estão suas cartas? Tenho tanto a te contar”
“Eu entrei pro time de basquete, e você pra comemorar comigo?”
“Você pode não se importar mais, mas eu ainda preciso de você”
“Eu te amo. Muito.”

         Eu não conseguia nem respirar. Eram muitas lágrimas, lendo linha por linha daquele bolo de cartas que estavam ali. E o pior não eram os papeis, eram as coisas que vinham junto delas e que minha mãe não me entregara. Ele havia me mandado diversas coisas anexas, pra que eu me sentisse parte daquilo. Um papel de chiclete na carta do dia em que ele quase morreu engolindo um chiclete por causa de um susto. Uma folha, a primeira a cair, na carta do início do outono. Uma foto do primeiro jogo dele no time, que por acaso ele ganhou. Mas lá no fundo, bem lá no fundo estavam os presentes que ele tinha me comprado no Havaí. Era um saquinho, e parecia pesado. Sorri entre lágrimas, ao perceber que ele tinha gastado dinheiro com tanta coisa pra mim. Abri rapidamente e comecei a tirar as coisas dali: um chaveiro que era uma prancha, feio a mão, escrito “Melhor amiga, para sempre”; um kit que grandinho, que quando eu abri, vi que era uma fantasia de hula e dentro tinha um bilhete “Espero ter acertado no tamanho. Mamãe que comprou”; um cd feito por lá do disco de Elvis Presley “Blue Hawaii”. Dentro, ele havia escrito “Pra você que ama Lilo & Stitch” – o que me fez chorar mais compulsivamente; e por último, havia uma boneca de pano vestida de havaiana que era a minha cara. Imaginei que ele estivesse esperando que eu vestisse a fantasia e fosse a alguma festa, agarrada na boneca. Ou que simplesmente lhe enviasse uma foto. Solucei um pouco, encostando numa das vigas do porão e dobrando os joelhos junto ao corpo, enquanto apertava a boneca seguindo meu choro. Eu não conseguia me controlar, cada parte de mim só pensava no tempo perdido e em como Josh tinha se preocupado comigo, lembrado de mim... Me amado como o melhor amigo que ninguém ia conseguir ter, só eu. E me impediram de ter. Eu me balançava como uma criança, pra frente e pra trás, tentando controlar o ataque de pânico que me consumia. Meus olhos e cabeça doíam pelo choro, mas as lágrimas não paravam de sair. A boneca em meus braços parecia ficar menor, quanto mais eu a apertava. Mas eu precisava respirar bem fundo e mostrar pra ele o quanto eu estava grata. Poderia ser tarde, mas não deixaria para o nunca. Josh precisava saber o quanto ele era importante pra mim. Ele não havia mentido. Ele teria mais motivos pra ficar com raiva de mim, pois – teoricamente – eu que o abandonei, mas ele não o tinha feito. Ele voltou, com toda a felicidade do mundo, disposto a esquecer do passado e me fazer feliz novamente. E ainda achando que a culpa era dele. Ele só podia ser um anjo.
Sem enxergar um palmo a frente do nariz, pelas lágrimas que saíam incontroláveis de meus olhos, eu me levantei com a boneca em mãos e corri escada a cima, para sair de casa e ir até os Hutcherson, gritar a ele e ao mundo que ele era meu melhor amigo. Ele era meu. Mas quando cheguei ao penúltimo degrau, senti tudo a minha volta girar e minhas pernas perderem a força. Errei o pé no degrau e logo vi o mesmo bem próximo do meu nariz. Tudo ficou escuro.

“E então, doutor? Como ela está?” “Bem, foi só um susto. Ela receberá alta pela manhã, mas deverá ficar em casa” Eu ouvia tudo, mas meus olhos estavam pesados. Não conseguia abri-los. Sentia que talvez não conseguisse mover minhas mãos, também... Minha cabeça estava pesada. E mesmo que conseguisse, não queria me mover. Estava reconhecendo as vozes na sala. “Muito obrigada doutor, tem certeza?” Minha mãe. E pelo “doutor”, eu não estava em casa. “Tenho sim, Senhora Carlson. Fique tranquila. O tombo não foi tanto, e ela desmaiou por conta da pressão baixa... Talvez algum estresse” “Certo doutor, eu confio no senhor” É claro, ela sempre se mostrou tão suscetível a homens graduados. “Agora deixe-a a dormir” Eu ouvi o homem falar “E tente descansar um pouco” “Certo, vou tomar um pouco de café.” E com alguns passos, ouvi a porta bater. Esperei alguns instantes, pra confirmar se estava sozinha. Fui abrindo os olhos devagar e como previ, só havia eu. A sala era branca, a luz forte, e o cheiro de hospital começava a me enjoar. Percebi que tinha um aparelho monitorando meus batimentos e soro entrando por minhas veias. Movi o braço devagar, que começava a doer assim que notei que havia uma agulha enfiada nele e quando fui seguindo o olhar pelo resto do quarto notei ao meu lado um arranjo de flores lindo. Eram rosas, de um rosa bem clarinho. Sorri e vi que vinham acompanhadas de uma caixa de chocolates e em cima dela um papel. Estiquei o braço bom devagar e peguei o bilhete. Abri e meu coração queria saltar quando vi o que estava escrito.

Te visitei, mas você estava dormindo. Não queria te acordar e precisava fazer coisas em casa, por isso deixei estas flores e os chocolates. Flores, pois alegram o ambiente – e eu sei que você odeia hospitais; chocolates, pois alegram a alma – e como eu não estou aí para fazer isso eu mesmo... Fica comigo, BanAnna.
Melhora por mim. Beijos, do Josh.

         Eu sorria como uma tola, nunca tinha sentindo meu corpo esquentar tão rapidamente, minhas bochechas queimavam. Com aquele bilhete, me lembrei de tudo o que tinha acontecido antes e tomei uma decisão.
         Por volta das 8 P.M eu fui liberada, e meu pai foi me buscar, levando eu e minha mãe para casa. Não estava sentindo nada, mas ainda estava meio cansada. Ainda assim, tinha forças para uma coisa. Não importava que o médico tivesse proibido, eu iria a escola no outro dia. Já tinha tudo planejado e era bem simples. Eu já via até a cara de Josh, abrindo um bilhete entregue pela inspetora onde estaria escrito, com a minha melhor caligrafia:

Encontre-me no terraço.

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